Philippe Descola (Les Formes du Visible, 2021), começa por afirmar: “Da miríade de imagens produzidas pelos humanos há, pelo menos, oitenta mil anos, só uma minúscula fração releva da arte e da sua história”. Nesta miríade de imagens estão contidas toda a sorte de representações, desde produções imagéticas com valor de culto, a imagens de corpos, decorativas, votivas ou utilitárias que, no entanto, têm em comum a necessidade de presentificar um ausente.

De uma forma complexa, a imagem fotográfica veio a cumprir, depois de todos os posfácios da História da Arte (de Hegel a Danto, de Belting ao muito recente Yves Michaud), uma versão dessa mesma necessidade de evocação do ausente, da sua presentificação, ou da sua libertação da inevitabilidade da cegueira do esquecimento. Depois de um processo de meio século (ou de muito mais, se tomarmos Hegel como o momento definidor da sentença de morte), o arco da História da Arte, entendida como história do espírito, ou do estilo, ou da Kunstwollen, ou da sobrevivência das fórmulas de Pathos, encontrou um momento de ocaso, ou de afasia, mesmo se tática.

O campo do fotográfico espalha-se, como um borrão impossível de conter, para lá da esfera do artístico, ou da sua zona secante em relação ao que podemos continuar a compreender como o campo da arte (com maiúscula, talvez). A produção imagética fotográfica, se bem que hoje muito dificilmente desenhável em termos epistemológicos, entendida como a produção de imagens lenticulares ou combinação numérica (ou ambas), ocupa uma grande parte da nossa possibilidade de representação do mundo e, sobretudo, substituiu o desenho como forma de mediar a nossa fixação do problema semântico da representação.

Nesse sentido, a fotografia (assim nomeada nas escolas, em muitos museus e arquivos) ocupou o lugar da grafia, substituindo também a ideia de limite interno do objeto representado pela noção de recorte (ou cesura, como ficou na reflexão teórica) no campo do visível. Neste exercício de fixação do olhar, nesta mediação permanente entre o olho e o mundo através de ortóteses cada vez mais embebidas no quotidiano da nossa possibilidade comunicacional (o telemóvel como parergon do dispositivo contemporâneo) desenha-se um novo e paradoxal modelo de evocação do ausente: é a imagem do próprio, construída fragmentarmente, no olhar sobre o pequeno quotidiano, a praia no inverno, a chávena de café abandonada, o resto da véspera ou a imagem furtiva do efémero e fugidio, que se afirma como uma imagem de convocação da impossibilidade da memória – e, portanto, da aceitação do esquecimento como destino. Este romantismo de segunda instância, votado à volição nas redes sociais, assola, como um espectro, a premência da eficácia do fotográfico como grande construtor da evocação do ausente, como Hermes ao serviço da sobrevivência das imagens, porque é o setor mais importante do processo de esquecimento.

É neste contexto que se torna fundamental o pensamento sobre o papel e estatuto da imagem fotográfica (ou do fotográfico como desempenho) no diálogo com outras formas de construção da imagética do mundo, desde a arte à arquitetura, do design ao cinema, ou seja, aos campos que se afirmam no universo do sensível e refletem sobre a questão da representação.

É nesse sector de relação que o fotográfico pode construir uma epistemologia própria da sua operatividade, da sua funcionalidade e da forma como pode resignificar campos da visualidade, mas também pensar a sua hapticidade (para além, claro, do pensamento sobre a sua historicidade, a vinculação ao tempo, a fundamentação do visível na definição projetiva de uma espacialidade e de uma temporalidade porosa, como foi sendo pensado de Benjamin a Sontag, de Barthes a Flussel, só para referir textos de referência).

O campo da academia, onde a reflexão deve ter sempre no horizonte os seus transcendentais, é um dos lugares no qual o fotográfico pode tomar-se como possibilidade de revisão dos processos de ver, fixar, reconfigurar e resignificar o visível num processo de experimentação e erro, de repetição e ensaio.

O projeto Contrast, recolhendo as experiências das diversas experiências formativas e colocando-as em índex, sob o olhar da nomeação e da apresentação, implica a construção de uma necessária epistemologia do fotográfico mas também, e sobretudo de uma epistemologia do ensino e da investigação sobre o caráter relacional da imagem, a sua complexidade e as suas condições de possibilidade.