Por ser geógrafo, não poderia falar de fotografia noutra condição que me provocasse maior erro e incomodidade. Na geografia clássica fotografa-se, sobretudo, paisagem: a coisa e a sua representação, que, como se sabe, são inseparáveis.

Não havia nessas práticas qualquer intenção pictórica, nem sequer um género ou um regime dominante de visualidade suficientemente legítimo ou consensual para se impor um modo de olhar ou de dar a ver.

A questão começava na própria paisagem e no desafio – esse, sim, bastante consensual – contido na questão da paisagem segregar uma síntese entre duas categorias herdadas do século das luzes: o meio natural e a acção dos humanos, natureza e cultura. Uma e outra coisa pensavam-se, ora como uma fusão onde se debatiam determinismos naturais, ora como um jogo de possibilidades de influência mútua. O meio físico e o seu infinito desdobramento de assuntos e relacionamentos complexos – a geologia, o clima, a geomorfologia, a vegetação natural, etc. – forneciam uma espécie de pano de fundo onde se desenrolava a evolução histórica das vicissitudes dos humanos que iam transformando essas condições primeiras em paisagens geográficas dotadas de legibilidade suficiente para delas se extraírem padrões, explicações ou descrições. Dizia-se que a paisagem era um registo contínuo da relação entre “o meio e o homem”, embora a dinâmica dessa continuidade fosse, sobretudo, decifrável nos seus elementos de maior permanência e continuidade.

Mais frequentemente, a abordagem da paisagem “natural” e da paisagem “rural” cumpriam estes objectivos de uma forma clara.

Da paisagem natural, ou, se quisermos, do acentuar dos elementos ditos naturais da paisagem, captava-se o tempo longo da transformação: uma superfície de erosão por milhões de anos roída pelos elementos; um vale alinhado por uma falha geológica deixando claro na bacia hidrográfica correspondente as marcas dos terraços, das rechãs, ou dos episódios de encaixe e erosão acelerada; no carácter errático dos meandros de um rio evoluindo numa planície aluvial, era possível fazer corresponder mudanças climáticas, oscilações do nível do mar ou episódios da dinâmica geológica; na persistente dureza de uma crista quartzítica, inscreviam-se superfícies de erosão de outras eras e tumultos que o tempo geológico entretanto tinha produzido.

O meio natural e as suas temporalidades e interacções, constituíam a matriz de leitura da marca dos humanos e das suas transformações: os socalcos para transformar uma encosta e artificialmente reter e consolidar o solo arável; a rega e os seus elaborados modos de fazer; a difusão de novas culturas e de inovações técnicas de cultivo; os campos abertos, o latifúndio, o regime de pousio, a combinação entre a criação de gado, a silvicultura e os cereais; os padrões de povoamento; os modos de construir e os seus materiais e procedimentos; a tradição, os costumes, os regimes jurídicos ou as opções políticas…, tudo teria a sua parte na descrição e na explicação de um padrão de paisagem, na sua inércia ou movimento de transformação. Como pilar económico do mundo rural, a agricultura e os seus territórios, os agricultores e a seu modo de organização, as técnicas e sistemas de cultivo, eram a máquina de fazer uma paisagem sintética transformadora das condições próprias da geografia física.

O desafio da fotografia era ilustrar esta sinfonia, ou, simplesmente, registar para construir e validar hipóteses, para comunicar, para complementar outras formas de análise e de representação que, como a cartografia, tinham um lugar central.

Por vezes a fotografia fixava um olhar sobre a vastidão do território, o perfil longínquo de diferentes relevos e superfícies, o desenho de um vale, a solenidade de uma planície seca, os aglomerados urbanos semeados por regularidades ou situações pontuais que se destacavam na grande composição do conjunto.

Outras, a objectiva fixava-se num pormenor: uma pedra de quartzito rolada por milhões de anos do correr de um rio, agora engastada no cunhal de um muro de xisto; a meda da palha; o largo do povoado; um espigueiro como um templo; uma fina camada de sedimento vermelho no corte de uma vertente, infinitas maneiras de perscrutar coisas mais vastas e complexas reveladas por pequenas ocorrências, fósseis, marcadores.

Eram estas as artes do ofício. O resto, o que também está nas fotografias, era uma neblina, uma certa atmosfera, um contraste de luz, uma figura humana, um corpo presente surpreendido no trabalho ou no descanso, os animais, certos ruídos ou calmarias daquele dia. Pode insinuar-se algum pitoresco por aí, algum romantismo serôdio ou realismo assumido. Em qualquer caso, não esse o ponto da questão.

Num registo completamente distinto, fotografam-se hoje paisagens críticas, cenários dramáticos do efeito predatório do capitalismo extractivista no agronegócio, na mineração, na floresta, ou na produção de energia eléctrica. Documento e ao mesmo tempo denúncia e suporte de acção política, o poder da imagem emerge como dispositivo poderoso de comunicação.

Não vejo na fotografia outra coisa que não seja entender o mundo, contrastar ou revisitar as inquietações de que é composto, descobrir horizontes, fazer perguntas, suscitar modos de pensar, denunciar, agir. O campo é infinito e não nos livramos das imagens, da verdade e da mentira e da realidade aumentada ou reduzida. Contrastar e decifrar imagens em tempos de saturação de imagens, do espectáculo e de imagens do espectáculo, constitui um desafio permanente, uma vigilância constante no ensino e na investigação em fotografia. Para os cépticos do poder das imagens ou para aqueles que acreditam que a arte demonstra ter eficácia onde a política falha, talvez seja necessário abandonar esses extremos – o desencantamento perante a enxurrada permanente de signos visuais de todo o tipo, ou, ao contrário os excessos de crença no efeito imediato e consequente da imagem que faz tocar as sirenes e as trombetas – e cultivar persistentemente a possibilidade de suspender os modos habituais de olhar para as coisas, praticando estranhamentos, mantendo-nos disponíveis para o imprevisto e para que essa revelação seja facilmente inteligível e, por isso, comunicável.

Nesse esse esforço de comunicação que a arte segrega, sou pelas fotografias “faladas”, acompanhadas de palavras que amplificam o efeito de ressonância do poder que a imagem para si reclama. Sou pela densificação da mensagem.

Contrast vai nesse sentido. Contrast é uma publicação que resulta de uma parceria entre escolas e instituições de investigação onde a fotografia ocupa uma posição central no seu próprio campo de produção, na arquitectura, no design, nas artes e nos estudos artísticos, no multimédia…, associando professores e investigadores e, sobretudo, alunos e seus projectos. Pode-se claramente imaginar que daqui resultará um processo de fertilização cruzada cujo resultado – focando-se na fotografia e nos seus modos de existência, produção ou divulgação, das condições que a tornam possível, dos discursos que a expõe e legitimam -, só pode ser altamente positivo.

Sem essa exposição cruzada, qualquer coisa pode existir isoladamente, enquistada no seu micro-mundo ou na tribo que a espera e reproduz (rejeitando outras). A exposição mútua, a alteridade, a discussão, o risco, são garantia de criatividade e inovação, como são oportunidades de questionar horizontes a partir de posições diversas. Sem contraste nem sequer haveria a percepção da luz porque tudo seria branco ou negro.